Por Manuel Carlos Silva, na XIII Convenção Nacional
A Moção A sustenta logo na rubrica I Uma vida boa para todas as pessoas.
Se, por um lado, a tese do Bem Viver, vinda de teóricos e movimentos latino-americanos, tem potencial mobilizador, necessita de ser explicitado o modo como chegar não só à “partilha dos bens comuns” (n.1), como à socialização dos meios de produção, o que implicaria referência à principal teoria para o objetivo estratégico duma futura sociedade ecossocialista: o materialismo histórico e dialético, articulável com outras como a decolonial e a feminista.
Se este objetivo não pode nem deve prescindir das lutas concretas e melhorias graduais em direitos sociais (trabalho, salários e pensões dignas, saúde, educação, habitação, cultura), ele terá como eixo fundamental o imperativo de nacionalizar e socializar os principais meios de produção acumulados na base da exploração capitalista, mas tal não é claramente explicitado na Moção A.
É aliás a omissão da abordagem materialista e histórica que faz resvalar por vezes a Moção A para uma perspetiva psicologista e culturalista, apontando para uma “sociedade doente” provocada pela “praga” da competição liberal (n. 2), a ‘cultura do ódio da direita que se radicaliza’ (n.25), “derrotar a política do ódio” (n.42) ou afirmar que “o medo é a arma dos donos disto” (n. 2), quando o medo provocado é efeito do poder económico e político que retrai e intimida as pessoas.
Estas, temendo a precariedade, o agravamento das sua situação ou até represálias, tomam atitudes defensivas por razões de sobrevivência e segurança mínima, ou seja, dada a dependência clientelar e a baixa consciência política de classe, os mecanismos de poder económico e político afastam amiúde os mais pobres das reivindicações comuns, da sindicalização e das ações coletivas, uma realidade bem presente e nem sempre ponderada pela direção do Bloco nas decisões políticas decisivas nos últimos anos, preferindo ‘explicar’ a não mobilização “pela degradação das leis” e o “esgotamento de modelos de ação sindical de fechamento sectário” (n. 32) numa implícita crítica ao PCP para se autojustificar de não ter nenhuma estratégia nem tática a este respeito, sendo obviamente de salvaguardar todavia a militância de camaradas nalguns setores e movimentos (‘Solidários’, ‘Vida Justa’, +SNS).
A Moção A, se no ponto 44 enquadra e bem a extrema direita no colonialismo, na celebração de ditadura e no projeto autoritário, os perigos do Chega não foram tidos suficientemente em conta até recente data. Se a direção do Bloco tivesse um conhecimento mais direto e próximo das representações sociais não só das classes intermédias como sobretudo da população pobre mas com baixa consciência de classe e consultasse as bases do Partido talvez teria tido a este respeito outra tática e estratégia em 2019-22, evitado ziguezagues (ora de namoro ora de zanga com o PS, incluindo a tática do chumbo de orçamento de 2022 na perspetiva de, mesmo perdendo alguns deputados, conseguir forçar o PS ora a um acordo ora mesmo a integrar governo sob o velha slogan ‘estamos prontos’), tal como agora aliás.
Agora, com a subida notável do Chega reconhece com razão a ameaça da direita radicalizada mas, mais uma vez numa aparente ingenuidade, propõe uma espécie de pacto ou exigência ao PS e até ao próprio PSD: que o PS não polarize com o Chega (n.29) e que o PSD se demarque do Chega para não normalizar a extrema direita! (n.22). Estes pressupostos parecem esquecer que as causas reais do alimento e da ascensão da extrema-direita são justamente as políticas austeritárias e neoliberais praticadas pelos governos PSD-CDS e do próprio PS, as quais induzem pessoas desesperadas, ressentidas mas despolitizadas a encontrar bodes expiatórios da sua situação de precariedade e pobreza em refugiados e imigrantes africanos, asiáticos e árabes, nos negros/as e sobretudo nos ciganos/as portugueses/as mas dados como ‘estrangeiros/as’, ora ‘ladrões’ ora ‘traficantes’.
Relativamente à rubrica V A oposição mais forte a que afirma uma alternativa, a Moção A, depois de constatar a agudização das desigualdades e o encosto do PS aos interesses do Capital, bem como a porosidade entre a política e a corrupção, propõe no ponto 28 a “separação entre a política e os negócios”, como se isso fosse possível no atual quadro capitalista. Mais uma vez, mesmo admitindo uma relativa autonomia do Estado em relação às classes sociais presentes na sociedade, em última instância o poder político, gerido pelo PSD/CDS e inclusive pelo PS, está intrinsecamente ligado aos interesses das classes dominantes.
Embora a Moção reconheça e bem a centralidade da contradição capital-trabalho (n.33), haveria que explicitar o princípio básico da luta de classes que a Moção A omite ou dilui. Em vez de lutas e solidariedades de classe, avança com equívocos conceitos como o da ‘solidariedade social’ (n. 23) – este também reivindicado pela doutrina social da Igreja ou pela social-democracia – ou o impreciso conceito político de elites (n. 3, 20), ou ainda fraseologias sem concretização possível na atual conjuntura: vg. o Bloco de Esquerda como oposição mais forte representa “o ecossocialismo contra a destruição” (n.31), sabendo que o ecossocialismo pressupõe outro modelo de sociedade que implica a conquista de poder pelas classes trabalhadoras, sendo, atualmente, horizonte e alavanca de ação coletiva mas ainda não realidade económica e socio-política.
Manuel Carlos Silva


