A guerra provocada pela criminosa invasão da Ucrânia pelas tropas da Federação Russa está a provocar o martírio de milhares de jovens, a insegurança da população, a destruição de infraestruturas essenciais e um verdadeiro desastre ambiental. A recente destruição da barragem de Nova Kakhovka, no rio Dniepre, com uma explosão que levou à derrocada de 600 metros do paredão, reflete a brutalidade de uma guerra que não olha a meios nem a consequências. A solidariedade com o povo ucraniano é essencial. mas não implica compromisso político com o regime que continua a perseguir a oposição. No último ano foram ilegalizados 14 partidos da oposição de esquerda, acusados de serem “pró-russos”. A coberto da guerra estão a ser retirados direitos constitucionais elementares e a independência dos Tribunais está sob forte pressão, como denuncia o líder da União das Forças de esquerda em texto distribuído internacionalmente.
Depois das ações das autoridades, de justiça na Ucrânia nada resta
Um poder judicial independente é uma das características e princípios fundamentais da democracia verdadeira. Já na Antiguidade Aristóteles escreveu sobre o assunto e, no Século XVIII, Charles Montesquieu definiu claramente a divisão de poderes no Estado entre três: o legislativo, o executivo e o judicial, devendo cada um deles ser independente dos outros.
Independência e habilitação dos juízes, elevadas qualidades morais e profissionais, obrigação de fazer cumprir as decisões judiciais — é nisto que muitos europeus e americanos acreditam, é isto que a sociedade quer.
Por sua vez, qualquer regime que queira tornar-se ditatorial começa por envidar esforços para destruir a independência do poder judicial.
O artigo 126º da Constituição da Ucrânia garante a independência e a imunidade dos juízes e proíbe qualquer forma de influência sobre um juiz. O poder judicial é independente dos outros poderes.
No entanto, na prática, estas disposições da Constituição têm sido grosseiramente violadas nos últimos anos. O poder judicial está sob enorme pressão.
Nos últimos 10 anos, o sistema judicial da Ucrânia foi objeto de quatro reformas fundamentais e de inúmeras alterações, e os juízes foram sujeitos a infindáveis atestações e recertificações, despedimentos, rotações e, o que é mais grave, perseguições.
Mas as tentativas das autoridades para destruir os restos de independência judicial e subjugar completamente o poder judicial atingiram porventura o seu apogeu durante a presidência de Zelensky.
Já em 2021, o Presidente Zelensky da Ucrânia tentou assumir o controlo do Tribunal Constitucional da Ucrânia, órgão judicial que avalia a constitucionalidade das decisões do presidente e do parlamento. Em 2020, o Tribunal Constitucional declarou parcialmente inconstitucional a reforma judicial iniciada pelo Presidente Volodymyr Zelensky e depois adoptada pela Verkhovna Rada [parlamento], tendo também declarado inconstitucionais vários artigos da Lei de “Prevenção da Corrupção”. Tudo isto provocou forte insatisfação de Zelensky e ameaças do seu gabinete aos juízes do Tribunal Constitucional.
O Presidente não tem autoridade para demitir os juízes do Tribunal Constitucional, que são independentes; e decisões em matéria de cessação antecipada dos poderes dos juízes competem exclusivamente ao próprio Tribunal Constitucional, num pequeno número de casos expressamente previstos na Constituição. No entanto, no intuito de afastar do tribunal os juízes que não controla, o Presidente emitiu um decreto, em Março de 2021, tentando demitir o presidente do Tribunal Constitucional, Alexander Tupitsky, e o juiz Alexander Kasminin. Ao mesmo tempo, o presidente violou gravemente a lei, excedendo criminalmente os seus poderes. Zelensky emitiu, assim, um decreto a anular os decretos presidenciais de 2013 que proviam estes juízes, nos termos da Constituição, nas suas posições no Tribunal Constitucional.
A ilegalidade de tais acções do Presidente foi tão óbvia e flagrante que o Supremo Tribunal deu provimento aos apelos de Tupitsky e Kasminin e reconheceu-as como ilegais, cancelando os decretos relevantes do Presidente Vladimir Zelensky.
Como retaliação, em 27 de Maio de 2022, a pedido dos procuradores do Gabinete do Procurador-Geral, o Presidente do Tribunal Constitucional, Tupitsky, foi posto na lista internacional de “procurados”, sob a acusação – atenção (!) – de saída ilegal da Ucrânia em Março de 2022, embora tal não configure nenhuma tipologia de crime.
A própria redação das estúpidas acusações contra o presidente do Tribunal Constitucional atesta o óbvio envolvimento das autoridades nos respetivos casos, na perseguição ilegal do juiz e na criação de um precedente de medo para qualquer outro juiz ucraniano que tente administrar justiça de forma independente.
O trabalho do Tribunal Constitucional ficou bloqueado de facto em 2022. E ninguém, nem os cidadãos da Ucrânia, nem os sujeitos com direito a recurso constitucional podem usar eficazmente o seu direito de recorrer ao Tribunal Constitucional para verificar a constitucionalidade dos decretos presidenciais e das leis parlamentares.
Mais brutal ainda foi o tratamento que as autoridades deram à solução do “problema” do Tribunal Administrativo da Comarca de Kiev (OASK), cujos juízes não estavam para se tornarem funcionários do gabinete do Presidente. O OASK era o tribunal encarregado de analisar a legalidade dos actos dos mais altos funcionários do Estado, incluindo o Presidente.
Assim, o Tribunal Administrativo da Comarca cancelou, do mesmo passo, a decisão de aumentar as tarifas de electricidade; declarou ilegal aumentar o preço do gás para a população; cancelou a decisão de mudar o nome da Moskovsky Prospect (Avenida de Moscovo) e da Avenida General Vatutin, em Kiev, respectivamente para Avenida Stepan Bandera e Avenida Roman Shukhevych, em honra dos dirigentes dos nacionalistas ucranianos que colaboraram com os nazis; reconheceu como nazis os símbolos da divisão SS “Galicia”; e tomou muitas outras decisões que desafiavam as autoridades.
Em 13 de Dezembro de 2022, a Verkhovna Rada da Ucrânia votou a favor dos projectos de lei nº 5369, elaborado pelo gabinete do Presidente, de liquidação do Tribunal Administrativo da Comarca de Kiev, e nº 5370, de criação, em seu lugar, do Tribunal Administrativo da Comarca da Cidade de Kiev: um artifício do Presidente e do Parlamento para destruir um tribunal independente, dispersá-lo e despedir juízes não controlados.
O Tribunal Administrativo da Comarca da Cidade de Kiev, criado pela nova lei, ainda não começou a funcionar. Os cidadãos veem, assim, ser-lhes, na prática, sonegada a possibilidade de recorrerem de decisões do Presidente e de outras autoridades superiores que restrinjam os seus direitos.
A própria falta de juízes torna ainda mais difícil o acesso dos cidadãos à justiça. Em Janeiro de 2022, segundo as estatísticas, a falta de juízes na Ucrânia ascendia a 2039 pessoas e a de funcionários judiciais a 3559; em mais de 60 tribunais gerais locais, a justiça é administrada por um juiz apenas; oito tribunais deixaram de funcionar devido à ausência de juízes com autoridade para administrar justiça. Assim, ainda antes de a guerra começar, cerca de 137.000 cidadãos viram-se privados do seu direito constitucional à protecção judicial dos seus direitos e liberdades.
Esta situação deve-se a problemas institucionais – dois organismos fundamentais encarregados de tomar decisões em matéria de nomeação de juízes não estão a funcionar. Em particular, a Comissão de Juízes para as Habilitações Superiores (HQJC), que, devido a alterações na legislação adoptadas em Novembro de 2019, a 24 de Fevereiro de 2022 estava há 26 meses sem funcionar.
Além disso, dois dias antes do início da guerra, o órgão constitucional, o Conselho Superior de Justiça (HJC), foi paralisado, tendo-se 10 dos seus membros demitido com efeito imediato em 22 de fevereiro de 2022. Cessaram, assim, cerca de 60 funções estatais que eles exerciam colectivamente.
O HJC ficou paralisado pela cessação voluntária de poderes de 10 dos seus membros. A razão foi a insistência do Conselho Superior de Justiça de que os poderes do Conselho de Ética (órgão formado sob a autoridade de Zelensky, que serve para determinar a conformidade de candidatos ao cargo de membro do Conselho Superior de Justiça segundo critérios de ética e integridade profissional, sendo metade dos seus membros cidadãos estrangeiros) para conduzir tal avaliação não têm base constitucional, não estando tal órgão previsto na Constituição da Ucrânia.
As autoridades, escondidas atrás do conceito de “segredo militar”, também começaram a vedar ativamente o acesso dos cidadãos ao registo de decisões judiciais. Em 24 de Fevereiro de 2022, a Administração Judicial do Estado, organismo responsável pelo funcionamento do registo e por nele verter as decisões judiciais, vedou completamente o acesso ao registo. Foi retomado em Junho de 2022, mas ativistas pelos direitos humanos verificaram que quase todas as condenações penais dos últimos três anos desapareceram do acesso público. Assim, por exemplo, na região de Kharkiv, apenas 30 sentenças de 2022 permaneceram no registo do tribunal, e apenas 19 para todo o ano de 2021. A fazer fé nos registos do tribunal, durante todo o ano de 2020 todos os tribunais da região de Kharkiv (com uma população de mais de 2 milhões de pessoas) emitiram apenas quatro sentenças, o que é claramente impossível.
Em 21 de dezembro de 2022, as organizações de direitos humanos interpuseram um recurso aberto para a Administração Judicial do Estado (SCA), exigindo o fim da prática negativa de restrição de acesso aos documentos do Registo Único de Decisões Judiciais do Estado, a reposição do acesso às decisões judiciais adotadas e garantia de acolhimento tempestivo de documentos processuais ao registo.
A SCA não tinha autoridade para confiscar decisões judiciais de acesso livre, até porque estas continham dados sobre a localização de entidades jurídicas – autoridades públicas, infra-estruturas críticas. É uma violação direta da lei ucraniana em matéria de “acesso às decisões judiciais”.
Para além da ilegalidade da confiscação das decisões, a restrição do acesso aos registos é uma manifestação do fechamento do poder, um passo atrás em relação aos valores democráticos.
O Registo Único de Decisões Judiciais do Estado é uma fonte importante para os jornalistas que investigam crimes de corrupção e abusos de poder, que se tornam duplamente perigosos para o país durante a guerra. Além disso, o acesso às decisões judiciais é uma necessidade diária na atividade de advogados, agentes da autoridade, ativistas públicos e defensores dos direitos humanos.
Em resultado desta política de forte pressão das autoridades sobre o poder judicial, têm surgido muitíssimas decisões absurdas e francamente ilegais dos tribunais, como, por exemplo, sentenças proferidas contra pessoas por conversas “antipatrióticas e anti-estatais” ao telemóvel, e proíbem-se todos os partidos da oposição na Ucrânia mediante sentenças fabricadas e feitas em série.
A política sistemática das autoridades no domínio da justiça tem o objetivo de destruir a independência do poder judicial e redunda na privação dos cidadãos da Ucrânia do direito a um julgamento justo e na usurpação do poder pelo Presidente.
Maxim Goldarb, Presidente da União das Forças de Esquerda (Pelo Novo Socialismo) da Ucrânia



Finalmente uma posição c/lucidez sobre a guerra na Úcrania.
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