Pobreza, exclusão e desigualdade social. Aproximação conceptual e alguns dados sobre Portugal

por Manuel Carlos Silva

Se a pobreza absoluta coloca em causa condições mínimas de sobrevivência físico-biológica, conduzindo à subnutrição, à fome e até à morte, a pobreza relativa implica um patamar abaixo das condições decentes numa determinada sociedade. A realidade da pobreza está presente não só nos países ditos do Terceiro Mundo, mas nos países da UE (com 95 milhões) e nos Estados Unidos (com 40 milhões).

Ideólogos (neo)liberais e até social-democratas, nomeadamente na Alemanha, complementaram ou substituíram o conceito de pobreza pelo de exclusão social. De facto, falar de ‘sociedade de abundância’ com a existência de pobreza, ainda que relativa, não era consistente! Assim, foi avançado o polissémico e mesmo equívoco conceito de exclusão social (cf. Silva 2009), o qual tem sido apresentado desde os anos 1980 como novo conceito-chave e paradigma do chamado modelo europeu sobre inclusão/exclusão social.

Porém, além de já elaborado por sociólogos clássicos, o conceito tem interpretações e alcances diferentes conforme a corrente sociológica: durkheimiana, (neo)weberiana, simmeliana e interaccionista simbólica e, por fim, (neo)marxista e decolonial. Segundo Durkheim (1977/1893), a exclusão social é vista como perda do laço socio-moral, como fenómeno anómico, resultante ora da divisão forçada do trabalho que não tem em conta as capacidades dos indivíduos, ora da prevalência da densidade material das trocas económicas sobre a densidade moral, sendo a sociedade incapaz de integrar alguns membros na partilha da consciência coletiva como conjunto de normas, valores e representações sociais comuns.

Já, porém, Weber (1978/1920), partindo de diferentes pressupostos e admitindo a conflitualidade sob diversas formas – económica (classe), social (estatuto), política (partido) – e outros tipos de conflito como os étnicos ou religiosos, sustenta que a exclusão social é resultante ora das formas de concorrência e competição nos diversos mercados, ora das relações fechadas próprias de certos círculos que usurpam, monopolizam e/ou restringem para si o acesso a determinados recursos e bens, saberes e funções, ora ainda da desigual atribuição e distribuição de poderes e recompensas pela via político-partidária na base de mecanismos e caraterísticas tais como classe social, raça, língua, religião.

Próxima da posição weberiana situa-se a perspetiva simmeliana em torno da categorização do pobre pelos demais, em que a exclusão social surge de processos de dissociação ou clivagem, por exemplo, entre autóctones e forâneos (Simmel 1971), ideia retomada pela Escola de Chicago sobre relações sociais em meio urbano e sobretudo pelo interacionismo simbólico (Goffman 1988/1963), centrado na teoria da rotulagem que explica os comportamentos ‘desviantes’, estereótipos e estigmas de vária ordem não pela qualidade dos ‘desviantes’ mas como resultado do confronto entre as convenções sociais e o olhar dos indivíduos ‘normais’ e o dos ‘desviantes’, excluídos, desclassificados, estigmatizados.

Por fim, numa perspetiva marxista, marcadamente estrutural com base em fatores sócio-económicos, a exclusão social seria um processo de desapropriação da maioria dos cidadãos/ãs, resultante da apropriação privada dos meios de produção por parte das classes dominantes (Marx 1974), pelo que excluídos seriam não apenas determinados grupos sociais vulnerabilizados, mas todos membros das classes trabalhadoras exploradas e oprimidas. Esta visão virá a ser enriquecida pela abordagem decolonial (Quijano 2000) que, rompendo com as lógicas do colonialismo, eurocentrismo e etnocentrismo, assume que a raça ou a pertença étnico-racial tem constituído, ao longo dos séculos, a base da sobreexploração, dominação, exclusão social e do racismo contra os povos colonizados. Por isso, o conceito de desigualdade social, estruturante e preferível sobre o de exclusão social, pressupõe a apropriação ou usurpação privada de bens, recursos e recompensas por parte de determinada classe, género ou grupo étnico-racial em detrimento de outro(a)/os/as.

Relativamente à desigualdade social em Portugal hoje, com base em dados estatísticos do ICOR do INE de 2021 e o Relatório do Observatório Nacional Luta contra a Pobreza de 2022, Portugal, sendo o país com maior nível de desigualdade de rendimento na UE após a Eslováquia (aumento de 5,8% no coeficiente de Gini e 13% no indicador S80/S20 em 2021), agravou os dados de 2009, em que, enquanto os 10% mais ricos acumulavam 26,5% do rendimento global (e 20% concentravam 45%), os 10% mais pobres ficavam apenas com 2,9% (ICOR 2010).

Portugal é também o 8.º país com maior vulnerabilidade social em 2021, com 2.312.000 pessoas (22,4% de população em risco de pobreza, das quais em 82% em pobreza monetária e 26% em privação material severa), tendo aumentado 12% (+256.000) relativamente a 2020. O risco de pobreza afeta mais as mulheres que os homens (23,5% vs 21,2%), os idosos (26.7%), as crianças (20%), os desempregados (60%), os trabalhadores a tempo parcial (26%) do que a tempo inteiro (10,5%), com baixos níveis de escolaridade que os licenciados (30,4% vs 8,7%), mais os estrangeiros extracomunitários que nacionais (entre 35% e 37,4% vs 22,1%), populações pouco povoadas (29,9%) que densas (19,6%).

Das 2.312.000 pessoas em risco de pobreza 1.893.000 viviam com rendimento por adulto inferior a 554 euros mensais e destas 775.000 com menos de 369,67 euros. Desse conjunto 55% são mulheres, 57% entre 18 e 64 anos, 25% com mais de 65 anos e 18% crianças, 16% não podiam ter a casa aquecida (28% entre os idosos e entre as mulheres a viver sós) e 5.9% de idosos/ as e 5,5% de mulheres passam fome. Para além do impacto da pandemia, foi sobretudo após a guerra na Ucrânia que 74% de portugueses/as afirmam em 2022 não poder suportar aumento de custos de energia ou dos alimentos, em média 15% em 2022. Tal implica que a mudança só ocorrerá com forte mobilização coletiva e a intervenção estatal com taxação sobre lucros e dividendos e políticas públicas em favor dos grupos sociais mais desprovidos.

Referências bibliográficas

DURKHEIM, E. (1977). A divisão do trabalho social. Lisboa: Presença.

GOFFMAN, E. [1988(1963)], Estigma. Notas sobre a manipulação da identidade deteriorada. Rio de Janeiro: Guanabara.

MARX, K. [1974 (1967)], O Capital. Lisboa: Delfos.

QUIJANO, A. (2000), “Colonialidad del poder: eurocentrismo e América Latina”, in E. Lander (org), La colonialidad del saber: eurocentrismo y ciencias sociales. Perspetivas latino-americanas. Buenos Aires: CLACSO, 246-276.

SILVA, M. C. (2009), “Desigualdade e exclusão social: de breve revisitação a uma síntese pro-teórica”. In Configurações, n.o 5/6: 11-40.

SIMMEL, G. (1971), “The Poor” in D.N. Levine (org), Georg Simmel: On the Individuality and Social Forms. Chicago: The University of Chicago Press.

WEBER, M. [1978(1920)], Economy and Society, editado por G.Roth e C. Wittich, Berkeley e Londres: University of California Press.

Manuel Carlos Silva

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