O “negócio da saúde” vai de vento em popa

por Carlos Matias
era claro que a lógica das USF, inicialmente apenas modelo A e B, um dia poderia vir a desembocar na criação de USF modelo C. O quadro legal estava criado desde 2007, bastaria ir degradando paulatinamente o SNS – tarefa zelosamente cumprida por PS e PSD – e aguardar que as condições políticas o permitissem.

O governo vai criar 20 Unidades de Saúde Familiar (USF) do tipo C. Ou seja, USF geridas por privados ou pelo sector social, como as Misericórdias. Serão criadas por concurso, em Lisboa, Leiria e Algarve, zonas em que é maior a carência de médicos de família.

A abertura dos Cuidados de Saúde Primários (CSP) a privados já estava prevista pelo Decreto-Lei n.º 298/2007 de 22 de Agosto, que permitiu criar as primeiras USF.

Inicialmente, a nova fórmula organizativa foi favoravelmente acolhida pelos médicos e pelos seus sindicatos. Os profissionais de saúde (médicos, enfermeiros, administrativos, etc.) puderam auto organizar-se e criar equipas a que são atribuídas listas fechadas de utentes. Cumpridos alguns objetivos e mediante um caderno de encargos, passavam de um inicial modelo A ao modelo B, com remunerações acrescidas – e, por isso, muito aliciantes.

Só que, perversamente, a organização em USF introduziu a competição entre profissionais e equipas, com ganhos individuais mediante resultados, nomeadamente na poupança de recursos ao Serviço Nacional de Saúde (SNS), como o recurso a meios auxiliares de diagnóstico.

Além disso, criou uma disparidade, raramente mencionada e nunca ultrapassada, no atendimento entre utentes.

Os utentes escolhidos para integrarem os ficheiros das USF têm atendimento garantido, com (teoricamente…) um médico sempre disponível. Os bons indicadores de satisfação desses utentes são, pois, compreensíveis.

Todos os outros vão para os médicos de recurso, quando os há, o que é cada vez menos frequente. Curiosamente, não são divulgados os indicadores de “satisfação” (?) desses utentes considerados de segunda. São os que alongam as filas à porta dos Centros de Saúde, para onde bastas vezes vão alta madrugada, sem conseguirem consulta.

Depois, com a criação das USF, o aumento dos rendimentos de apenas alguns profissionais, criou enormes iniquidades e divisões. Uns – os das USF – auto intitulavam-se a nata da Medicina Geral e Familiar; os outros seriam “o resto”, ainda que alguns destes já contassem com muitos anos de bom serviço.

Por fim, era claro que a lógica das USF, inicialmente apenas modelo A e B, um dia poderia vir a desembocar na criação de USF modelo C. O quadro legal estava criado desde 2007, bastaria ir degradando paulatinamente o SNS – tarefa zelosamente cumprida por PS e PSD – e aguardar que as condições políticas o permitissem.

Curiosamente, a criação do modelo das USF sempre foi acarinhada quer pela direita, quer pelas diversas esquerdas. Ao longo de anos, a disputa política apenas se foi fazendo pelo número de USF que eram ou não criadas, sem ninguém colocar em causa o próprio modelo.

Agora, com a criação das primeiras USF modelo C, entramos na última fase do processo, abrindo aos privados o negócio dos Cuidados de Saúde Primários (CSP).

Perguntarão: mas, afinal, onde irão os promotores das novas USF modelo C buscar os médicos de família, sem “canibalizar” o próprio SNS?

Segundo o governo, o decreto que abre a porta à criação das novas 20 USF irá prever restrições que impeçam que médicos em funções em centros de saúde ou USF modelo B transitem para este novo modelo. Cristina Vaz Tomé, Secretária de Estado da Saúde, é mais precisa: “Vamos criar formas de condicionar temporariamente, mas, por outro lado, vamos querer captar os recém especialistas”. (Jornal Público, 04-09 24)

Aqui, a palavra chave é “temporariamente”. Na lógica do governo do PSD, o negócio da saúde poderá ir mais depressa ou, “temporariamente”, mais devagar. Mas, não irá parar.

Isto, é claro, se ninguém sair em defesa do SNS público, universal e gratuito.

Carlos Matias

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