AS ESQUERDAS MOVEM-SE

“As Esquerdas Movem-se” é o mote dos debates realizados ou a realizar, promovidos pela Rede Ecossocialista, no Porto, Lisboa, Braga e Viseu, a partir do artigo com o mesmo título publicado na revista Ecossocialismo e que hoje colocamos on-line disponível para todas as pessoas interessadas no tema e nos debates.

por FERNANDO BESSA RIBEIRO e PEDRO SOARES (artigo publicado na Revista ECOSSOCIALISMO #8 – setembro/2024)

Em junho, realizou-se mais um ato eleitoral para escolher 720 deputados para o Parlamento Europeu (PE), única instância europeia para onde os cidadãos podem escolher diretamente os seus representantes, o que nos diz muito sobre a baixa intensidade democrática da União Europeia (UE). Destas eleições, saiu um hemiciclo mais à direita.

A esquerda reunida no Grupo da Esquerda (GUE/NGL) ficou reduzida a 6.39% dos votos (46 em 720 deputados), a que se podem somar os seis deputados alemães da Aliança Sahra Wagenknecht (BSW) e os dois deputados do Partido Comunista Grego (KKE). Ainda assim, comparando com as eleições anteriores, de 2019, o resultado é ligeiramente favorável, considerando os 5.24% então obtidos (37 em 702 deputados). A esquerda resistiu à onda da extrema-direita, sendo o BE e o PCP dos poucos a perder eurodeputados.

Quem, no amplo campo da esquerda, se preocupa com as debilidades (eleitorais, mas não só) e o futuro das forças de referência ver-se-á confrontado com muitas interrogações. Seja qual for o ponto de vista, a capacidade para influenciar uma outra política na UE é muito reduzida. Não só porque o PE pouco pode e os Tratados podem tudo, mas também porque as fraturas no interior da esquerda são notórias e até dilacerantes. Às velhas diferenças sobre a moeda única e o próprio projeto europeu juntam-se agora as divisões em torno das respostas à crise ambiental, da imigração e, com toda a urgência que a situação impõe, da guerra na Ucrânia e do papel aí desempenhado pelos países europeus e pela NATO, enquanto braço armado do imperialismo norte-americano. O posicionamento face à guerra na Ucrânia, à NATO e à crise ambiental está a cavar linhas demarcatórias cada vez mais fundas.

Parte da esquerda está rendida ao que Nancy Fraser designa por “liberalismo progressista”, limitada a causas compatíveis com o capitalismo e, não raras vezes, adotadas por camadas da burguesia. À partida, num ou noutro caso tais opções até poderão não ser negativas; mas, são absolutamente insuficientes para afirmar uma alternativa. Parte desta esquerda alinha despudoradamente no greenwashing ambiental e no apoio à matança nas planícies ucranianas. Com surpreendente leveza, foge a uma dolorosa ilação: está a ser adotada uma economia de guerra, na Europa, à custa de recursos subtraídos às políticas sociais. Esta opção política, económica e social – nunca sufragada – visa construir um sólido pilar da luta do imperialismo norte-americano contra a China. Os poderes fácticos ocidentais procuram impedir o fim de seis séculos de hegemonia, por todas as formas. Apesar de condenada ao fracasso, esta economia de guerra acresce à crise climática e constitui perigo existencial para a humanidade, podendo mesmo levar ao holocausto atómico.

Para quem mantém a exigência de uma profunda mudança social, ambiental e económica, não fará sentido a crescente osmose entre alguma esquerda e esta UE claramente financeirizada. A diluição entre projetos antagónicos apaga a necessidade de lutar por uma alternativa, por uma “outra Europa”. Cria um espaço ilusório onde se amalgama, numa conjugação impossível, neoliberalismo, soberania das nações, interesses dos povos, direitos dos trabalhadores e defesa do ambiente.

No programa eleitoral do Livre, esta visão é por demais evidente. Propõe um conjunto de medidas que, consideradas individualmente, poderão ter algum interesse, mas que não mudam o caráter essencial da UE. Aliás, no âmbito da construção neoliberal imposta pelos Tratados, são da mais duvidosa concretização. É nesse espaço viscoso que se inscreverá o slogan “Europa por Ti” que o BE decidiu escolher para se apresentar às eleições ao PE. De que “Europa por nós” falamos? Da Europa da paz, da solidariedade e do bem-estar, da Europa da defesa da legalidade e do reconhecimento do direito a outros povos a terem outra posição que não a dos Estados Unidos e dos governos vassalos? Ou da Europa que oprime e recusa qualquer outra alternativa política que não seja a da ordem capitalista e do ordo‑liberalismo como os alemães o definem e praticam?

Os fenómenos sociais e políticos nunca têm uma única causa e, portanto, os resultados preocupantes da esquerda portuguesa terão origens diversas. Mas, entre todos, relevamos os “zig-zags” políticos que se desenvolvem e acumulam desde a “geringonça”. Decidir apenas com base no que, em cada momento, parece ser mais popular não é a atitude política apropriada a quem adota uma perspetiva de profunda mudança social. Expressão maior deste posicionamento equívoco foi o voto a favor do BE, posteriormente emendado, da resolução do PE que dá licença a Israel para matar, na sequência do 7 de outubro de 2023.

Indo a fundo, perante o manifesto dos compromissos eleitorais do Bloco ao PE, a conclusão só pode ser uma: estamos perante uma mudança política que, no plano europeu e internacional, reflete a rendição à União Europeia tal como existe. Em nenhum ponto do manifesto encontramos a exigência de corte com a NATO; antes se apela a uma vaga “autonomia estratégica da Europa”. Expressão eufemística, a fazer tábua-rasa da história de colonização e genocídio de povos inteiros e de alinhamento empenhado das potências europeias nas últimas guerras de destruição e ocupação. Basta lembrar o Iraque, o Afeganistão e a Líbia.

Sabendo o que significa, como defender, então, essa tal autonomia estratégica europeia? Exemplo insuportável é o apoio obsceno do chamado eixo euro-atlântico, incluindo dos principais governos europeus, ao governo fascista de Netanyahu. Com armas alemãs, francesas, espanholas e de outros fornecedores europeus, o governo sionista massacra sem piedade o povo palestiniano, encurralado na maior prisão a céu aberto do mundo.

No caso do Livre, já não surpreende por aí além a colagem acrítica ao modelo desta UE, na linha dos Verdes europeus assumidamente defensores do belicismo. Agora, também a direção do BE inflete no caminho da social-democracia. Aparenta desconhecer que a social-democracia – transmutada em social-liberalismo – já nada tem a oferecer às classes trabalhadoras e a uma saída do capitalismo. Quando assistimos ao voto favorável – ou abstenção, que no nosso presente dramático nada mais é do que cumplicidade – de resoluções onde se reconhece ou se apela ao reforço ou à ação da NATO, como voltou a acontecer já no presente mandato do PE (1), não estamos apenas perante claudicação. Estamos perante uma falha moral, porque parceira de uma ordem política e de governos que optaram pela guerra enquanto falavam de paz(2). Hoje, mais próximos do que nunca do holocausto atómico que promete transformar a Europa num inferno radioativo, é muito pouco exigir uma “conferência de paz” para a guerra na Ucrânia. A decência impõe como única exigência o cessar-fogo imediato.

O carinho com que a comunicação social sempre acolhe as “criativas” ideias do Livre e, sobretudo, esta transformação em curso na identidade matricial do BE importa a toda a esquerda. Consequentemente, deve ser inscrita nas análises às recentes alterações no quadro partidário nacional. As placas tectónicas deste sistema estão a mover-se. E não é só à direita.


Nota: escrito a 4 de agosto de 2024, nos 110 anos da traição à paz e ao internacionalismo das classes trabalhadoras, quando os deputados do Partido Social-Democrata alemão votaram os créditos para a guerra que iria ceifar a vida de milhões de operários e camponeses feitos à pressa soldados pelos governos das potências imperialistas europeias.


(1) Resolução do Parlamento Europeu, de 17 de julho de 2024, (2024/2721(RSP)).
(2) São ilustrativas as declarações de Angela Merkel à revista Der Siepgel e ao jornal Die Zeit sobre o modo como os acordos de Minsk de 2014 e 2015 foram encarados a Ocidente, revelando que os governos europeus não tinham interesse algum em respeitar os compromissos neles fixados, mas tão somente preparar a Ucrânia para a guerra (cf. https://www.wsws.org/en/ articles/2022/12/22/ffci-d22.html).

Debates “As Esquerdas Movem-se”:

Braga – dia 23/out, quarta-feira, 18:00 horas, na Livraria Centésima Página (Praça Central, 118-120, Braga), com Ana Filipa Costa, António Cruz Mendes e Fernando Bessa Ribeiro.

Viseu – dia 01/nov, sexta-feira, 18:00 horas, na Petiscaria do Carmo (Rua do Carmo, 28, Viseu), com Carlos Clara Gomes, Carlos Matias, João Paulo Rebelo e Manuela Antunes.

Lisboa – dia 11/nov, segunda-feira, 18:00 h, na Biblioteca Camões (Largo do Calhariz, 17, Lisboa), com Manuel Carvalho da Silva, Pedro Soares e Raquel Varela.

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