por Leandro Pires e Pedro Soares
O documento proposto pela maioria da Comissão Política à Conferência não aborda matérias essenciais e mistifica outras. Começa por não fazer qualquer balanço político dos últimos anos, tanto do ciclo de derrotas eleitorais e da perda de influência política e social, como do estado catatónico da própria organização. Consumar uma alteração da linha política sem que esteja sustentada por um balanço não faz sentido. No mínimo, será fuga a assumir responsabilidades perante o coletivo.
Mistifica as mudanças e diferenciações na classe trabalhadora, que de facto existem fruto das próprias mutações do capitalismo, resumindo-as de forma simplista à conclusão de “uma tendência consistente de perda de influência sindical”, procurando desvalorizar o maior e mais influente movimento social, mas também tentando passar a ideia de que o papel como classe assalariada na sociedade se circunscreve ao sindicalismo.
A classe trabalhadora cresceu a nível mundial, adquiriu uma composição mais complexa, resultado da própria globalização que proporcionou mudanças na divisão internacional do trabalho, incorporou mudanças tecnológicas e novos modelos de laboração, trouxe mais precariedade, uberização e até proibições na sindicalização.
Neste contexto, a responsabilidade das forças que querem uma alternativa ao sistema capitalista é ainda maior na formulação de um programa capaz de fazer convergir a classe trabalhadora na luta por um novo modo de produção, em vez de a excluir, secundarizar ou diluir. Sabemos que criar um amplo e massivo movimento popular capaz de mudanças estruturais no modo de produção, só está ao alcance da classe trabalhadora, entendendo-se como tal todas as pessoas que não possuem meios de produção e são obrigadas a vender a sua força de trabalho para sobreviver com a insegurança e a precariedade impostas pelo mercado.
Pensando na relação estrutural da classe trabalhadora com a produção a todos os níveis, fundamental para a definição da sua centralidade, como articular com as outras várias formas de opressão, como o racismo ou o sexismo?
A opressão, nas suas formas mais violentas ou mais subtis, mas sempre discriminatórias, das comunidades e das pessoas racializadas, das mulheres, das pessoas LGBTQI+, dos imigrantes e refugiados, de quem é portador de deficiência, etc., está intimamente ligada ao modo de produção capitalista que produz uma classe dominante que detém o poder e os meios de produção.
Este quadro onde os seres humanos são meros objetos e o Capital é o sujeito, o foco encontra-se na procura de lucro e na extorsão de mais-valia. A opressão sexista é mantida porque permite trabalho reprodutivo não remunerado; a opressão LGBTQI+ é mantida para assegurar uma nova geração de força de trabalho; a opressão capacitista mantem-se por haver menos capacidade de extorsão de mais-valia das pessoas com deficiência. Nenhuma destas ou outras opressões será eliminada, nem os avanços serão permanentes, enquanto vivermos num sistema onde somos objetos e o sujeito é o Capital. As relações de produção têm de ser radicalmente alteradas.
Esta é a razão de fundo para que o movimento laboral incorpore a luta contra todas essas formas de opressão. Por exemplo, é impossível não ligar o esclavagismo a um sistema racializado e desumanizado de produção que se estendia a toda a vida social, incluindo o apartheid. A discriminação salarial das mulheres nas fábricas e nos serviços é uma forma de aumentar a exploração da mão de obra feminina. E a opressão machista não favorece a reprodução social da força de trabalho a baixo custo? E a imigração não regularizada não determina baixos salários e menos direitos laborais e de cidadania?
Inevitavelmente, formas de ódio e de discriminação transmitem-se para o exterior dos locais de produção e ocupam ostensivamente o espaço público e privado. O conservadorismo ao serviço do capital encarrega-se de defender essas práticas, criar entidades que as promovem e construir narrativas alegadamente culturais, religiosas, biológicas ou outras para as justificar e normalizar.
A bússola de um partido de esquerda tem de ter como norte o combate por um novo modo de produção. Esta orientação, com uma linha tática adequada, é a que consegue ampliar uma política de esquerda na sociedade.
O surgimento a partir do interior da moção A de um texto alternativo global que vai de encontro ao que a moção E(cossocialista) tem defendido sobre a ausência de um balanço, o comportamento ziguezagueante do Bloco e a perda da sua matriz socialista, é um dado novo e positivo, que é de saudar e valorizar se for consequente.
Nota: texto publicado no Boletim nº 2 da V Conferência Nacional do BE

