Bairros populares no Porto e em Braga: da mobilização pelo direito à habitação no pós-25 abril 1974 e a relativa passividade hoje

por Manuel Carlos Silva

Tendo coordenado uma investigação nos bairros populares do Porto e de Braga, foram constatadas  severas condições de vida e de habitação. Porém, salvo casos excepcionais em que houve alguma mobilização com resultado de reabilitação (vg. caso da ‘ilha’ da Bela Vista no Porto), não constatamos ações coletivas, contrariamente à situação no pós 25 de Abril no quadro do PREC com inúmeras mobilizações a ‘partir de baixo’ nos bairros populares graças à conjugação de vários fatores: mobilizações populares, apoios de equipas técnicas e a normativa e financiamento governamental (D.L. sob Secretário de Estado Nuno Portas).    

Poder-se-ia dizer que, sendo, na sua maioria, operários/as, trabalhadores/as não qualificados/as e de serviços, pessoas reformadas e/ou em situação de desemprego, precariedade e com privações económicas, poderiam à partida constituir uma base de ação coletiva. Porém, tal não é constatável, porque, contrariamente a uma velha ideia em certa esquerda, segundo a qual os mais pobres e destituídos ou com poucos recursos estariam predispostos à mobilização e à revolta, tal não acontece, como já comprovado em várias situações históricas, nomeadamente em sociedades de prevalência camponesa (Scott 1990, Silva 1998) mas também operária e doutras classes desprovidas (Thompson 1979, Burawoy 1979, Silva 2023). Aliás, o próprio Marx já constatara tal situação na França do século XIX em relação aos camponeses sob Louis Bonaparte, nomeadamente nas suas obras O 18 de Brumário de Louis BonaparteA Luta de Classes em França um desajustamento entre a objetiva ‘classe em si’ e a ‘classe para si’ não mobilizada nem organizada coletivamente. A chamada aliança operário-camponesa não se verificou nem na ex-URSS, nem noutros países em diversos continentes, nomeadamente em Portugal e noutros países do sul de Europa.

Tomando os bairros populares no Porto e em Braga como objeto de reflexão e comparação entre o pós 25 de Abril 74 e a realidade de hoje, poder-se-á dizer, antes de mais, que o contexto social e político era bastante favorável sobretudo até ao 25 de Novembro de 1975, mas, logo em 1976, o poder central deixou de financiar e apoiar tecnicamente os projetos do SAAL, deixando essa tarefa à autonomia e/ou discricionaridade das Câmaras Municipais que poderiam prosseguir tais projetos e até incorporar técnicos nos Serviços camarários para o efeito (ou não). De facto, salvo casos excepcionais em que as Associações de Moradores pressionaram e/ou algumas Presidências de Câmara foram favoráveis à prossecução do SAAL a nível local, as Câmaras, na sua grande maioria, abandonaram e/ou deixaram cair tais projetos de reabilitação. Ou seja, no pós-25 de Abril estavam presentes não só condições objetivas, como organizativas e institucionais, o que não foi o caso posteriormente na maior parte dos sucessivos mandatos camarários ao longo de décadas, tendo-se tais situações degradado com a subida ao poder local sobretudo por parte de partidos e coligações dominantes em Portugal na grande parte dos municípios, nomeadamente de direita, em Lisboa, no Porto e  noutros municípios.

Por isso, quando se pergunta por que é que estas populações nas ilhas e bairros populares perderam impulso de mobilização, é evidente que tal se verificou porque, salvo algumas melhorias resultantes da implementação de conquistas do Estado Social, mantiveram-se condições objetivas  de desemprego e precariedade, baixa escolaridade, habitação precária e baixos rendimentos (o escalão mais representado nos rendimentos, em 2017-18, era de  251- 557 euros para 49,9% dos inquiridos/as e para 36,4% de agregados familiares respetivamente). Mas foi sobretudo a ausência das condições organizativas, de liderança e mobilização. E, num contexto de fragilidade e precariedade crescentes e sem organização, os moradores/as foram-se sentindo cada vez mais impotentes para contrariar as lógicas dos poderes instalados e eventuais lobbyes de interesses imobiliários em torno de certos espaços urbanos. Mais, sem as precondições necessárias à ação coletiva, restou-lhes, em regra, estratégias de recurso a técnicos ou políticos locais num quadro relações diádicas e de dependência clientelar ou patrocinal. E, portanto, sem capacidade reivindicativa coletiva, apenas procuraram melhorar a sua situação pela via individual ou familiar e, mais amiúde, lutar pela sobrevivência e a segurança mínima, de modo a não piorar a sua situação. Impõe-se às comissões/associações de moradores, articuladas com movimentos sociais na base da pertença de classe, étnico-racial e de género, criarem pre-condições organizativas e de liderança para ação coletiva com horizonte de utopia transformadora da sociedade.    

Nota: Texto publicado no Boletim nº 2 da V Conferência Nacional do BE

Deixe um comentário

Este site utiliza o Akismet para reduzir spam. Fica a saber como são processados os dados dos comentários.