É a natureza, estúpido! Reflexões sobre a COP16 e (ainda) o relatório Draghi

Por Marta Leandro

Os serviços da Direção-Geral do Ambiente da Comissão Europeia (CE) quantificaram o valor da natureza em 40 milhões de biliões de euros: uma soma astronómica da qual dependem, para serem competitivos, três sectores económicos (agricultura, construção e alimentação e bebidas) e seis fileiras industriais: produtos químicos e materiais; aviação, viagens e turismo; imobiliário; mineração e metais; cadeia de abastecimento e transportes; retalho, bens de consumo e estilo de vida.

Em meados de janeiro de 2020, o Fórum Económico Mundial reunido em Davos reconhecia, após analisar 163 sectores industriais e respetivas cadeias de abastecimento globais, que as empresas estão mais dependentes da natureza e da biodiversidade, incluindo a biodiversidade agrícola, do que esperava, como indica o relatório então divulgado (The New Nature Economy Report), onde podemos ler que “à medida que a natureza perde a sua capacidade de fornecer esses serviços, estas indústrias podem sofrer perturbações significativas.”

Este valor gigantesco corresponde a mais de metade do produto interno bruto mundial. Só na União Europeia, a CE avalia entre 200 e 300 mil milhões de euros os benefícios anuais da Rede Natura 2000 e prevê que a proteção da biodiversidade possa originar 500 mil novos postos de trabalho. A perda de biodiversidade ameaça a saúde e a segurança alimentar e agrava as alterações climáticas.

Estando a natureza na origem de tanta riqueza mundial o normal seria… protegê-la, não? Não! Como indicam os resultados de mais uma Conferência da Biodiversidade das Nações Unidas (COP16), que no dia 2 terminou em Cali, na Colômbia – de forma inconclusiva por ausência de quórum –, continuamos sem compreender a premência da situação. De resto, apenas uma mão cheia de chefes de Estado se deslocaram à COP16, sintoma da ausência de importância política atribuída à temática.

Uma vez mais, os políticos não se entenderam sobre o financiamento que é urgente pôr em prática. Os países mais pobres têm contestado o modelo de gestão do Fundo Global para a Biodiversidade e reivindicado junto dos Estados ricos a troca de dívida soberana por ações em defesa da natureza e do clima.

O fundo necessita de 18 mil milhões de euros/ ano para proteger 30% dos ecossistemas terrestres e marinhos, até 2030, mas a generalidade dos países assobiou para o lado, a UE avançou com uns míseros 160 milhões de euros – para se ter uma ideia dos valores, refira-se que a UE prestou apoio económico, humanitário e militar à Ucrânia no valor de mais de 88 mil milhões de euros, desde a invasão da Rússia – e no final foram doados cerca de 377 milhões de euros, com o Canadá, onde há dois anos se acordou o Quadro Global de Biodiversidade deKunming-Montreal, a contribuir com 132 milhões de euros.

Uma boa notícia

Mas uma boa e inesperada notícia foi o acordo de última hora sobre os mecanismos de partilha dos benefícios económicos dos recursos genéticos associados à biodiversidade – na origem de receitas milionárias das empresas dos países desenvolvidos, designadamente farmacêutica e cosmética, que agora deverão destinar 1% dos seus lucros ao Fundo Cali destinado à conservação –, em grande parte protegidos nos sumidouros de vida localizados e protegidos pelos países em desenvolvimento.

Paupérrima foi também a participação portuguesa, com a delegação do país, presidida pelo presidente do Instituto da Conservação da Natureza e Florestas (ICNF), a apresentar-se com uma Estratégia Nacional de Conservação da Natureza e da Biodiversidade (ENCNB 2030), aprovada em 2018, mas cujos planos de monitorização, e sobretudo de ação, incluindo os prioritários, caíram no esquecimento.

Em fevereiro, Portugal já fora novamente alvo de uma ação no Tribunal de Justiça da UE, por incumprimento do Acórdão de 2019 que obrigou à adoção de objetivos e medidas de conservação relativas a 61 sítios de importância comunitária (SIC) como zonas especiais de conservação (ZEC), no âmbito da Diretiva Habitats. O que impera é a degradação do estado de conservação do património natural. Como poderíamos apresentar no exterior o que não temos cá dentro, com um ICNF cronicamente subfinanciado e até assoberbado com competências questionáveis como o bem-estar dos animais domésticos?

Claro que a pandemia e a situação de insegurança geo-estratégica vieram piorar as dramáticas circunstâncias atuais, em que segundo a União Internacional para a Conservação da Natureza (UICN) mais de 46 mil espécies estão em risco de extinção, incluindo um terço das árvores do planeta – situação agravada nas florestas insulares, como em território português acontece com a milenar floresta laurissilva, especialmente negligenciada na região autónoma da Madeira.

Daí que não surpreenda o volte-face de Ursula von der Leyen face ao objetivo de “trazer a natureza de volta às nossas vidas” inscrito no Pacto Ecológico Europeu. Após as eleições europeias de junho, a “prosperidade e competitividade” da União foi eleita como uma das 3 prioridades políticas da Agenda Estratégica para 2024-2029. Na base da construção de uma UE próspera, o Relatório Draghi sobre o “Futuro da Competitividade Europeia”, encomendado pela Presidente da CE, defende um aumento de 800 mil milhões de investimento, público e privado, para reavivar a economia europeia, tornando-a competitiva face ao Inflation Reduction Act (IRA) dos EUA ou ao plano diretor industrial Made in China 2025.

O trabalho do economista italiano, ex-primeiro ministro e presidente do Banco Central Europeu entre 2011 e 2019, que teve um papel de relevo na crise da dívida soberana europeia que, até 2012, ameaçou a sobrevivência do euro, foi recebido de forma quase unânime e em êxtase: mais inovação, menos regulamentação, energia mais barata e um foco dominante no reforço da indústria de defesa, eis uma síntese dos remédios de Draghi.

Desregulamentar é o caminho?

Mas será que desregulamentar é mesmo o caminho? Alguns exemplos, no campo agroalimentar, explicam os perigos da desregulamentação: a UE proíbe o uso de antibióticos, como produto fitossanitário para o combate a doenças das plantas na agricultura, os EUA permitem-nos; a UE proíbe o uso de hormonas de crescimento aos criadores de gado, os EUA autorizam-no; há quase cinco anos a UE proibiu a venda de pesticidas com clorpirifós, um produto extremamente tóxico que provoca malformações, mas fora da União são autorizados.

Os agricultores europeus, especialmente os espanhóis, têm acusado a África do Sul de concorrência desleal por exportar para a Europa citrinos com menores exigências regulamentares. Há 5 anos, a propagação de uma praga originária da África subsariana (scirtothrips aurantii), um inseto que se alimenta de frutos, em particular laranjas e toranjas, dizimou os pomares de citrinos de Valência e da Andaluzia e mais recentemente chegou a Tavira.

No campo energético, Draghi defende a descarbonização como alavanca que irá aumentar a segurança de aprovisionamento da Europa, mas numa perspectiva de “neutralidade tecnológica”, admitindo o nuclear e as tecnologias de captura e armazenamento de carbono (CCS) como soluções, ao contrário do que sustenta o Painel Intergovernamental para as Alterações Climáticas (IPCC), que as considera pouco eficazes na mitigação do aquecimento global. O relatório não realça claramente o baixo preço, a rapidez de instalação e a competitividade que as renováveis hoje alcançaram.

No plano da defesa, em que os EUA e China somaram em 2023 cerca de metade da despesa global, Draghi advoga um aumento do investimento, em linha com a reivindicação da Comissão de que na próxima década a UE deve investir 500 mil milhões de euros, prejudicando a despesa pública com a proteção social: “após anos de subinvestimento, a UE tem um longo caminho a percorrer para restaurar a capacidade industrial e, consequentemente, aumentar as capacidades militares. Apenas dez Estados-Membros gastam mais do que ou o equivalente a 2% do seu PIB, em conformidade com os compromissos assumidos no âmbito da NATO (2014). Se todos os Estados-Membros da UE que são membros da NATO que ainda não atingiram o objetivo de 2% o fizessem em 2024, isso traduzir-se-ia em cerca de cerca de 60 mil milhões de euros adicionais em despesas com a defesa.”

Um mundo cego, surdo e mudo

Em vez de uma economia progressiva, mas urgentemente descarbonizada, Mario Draghi defende uma economia bélica e blindada, numa UE que tinha prometido desde a sua fundação (CEE) tornar-se um espaço de paz. Não seria mais importante e mais de acordo com o interesse e o bem-estar da grande maioria da população europeia que a modernização tecnológica e o aumento da competitividade europeias fossem alcançadas a partir de uma estratégia de I&D para a transição energética, autonomia alimentar e descarbonização da economia, com forte investimento nas indústrias limpas, na mobilidade elétrica e na agricultura sustentável?

Para o EEB, não seremos verdadeiramente competitivos deixando o planeta e as pessoas para trás: “a verdadeira vantagem competitiva da Europa reside no facto de liderar uma transformação global – impulsionando a desintoxicação, a despoluição e a recuperação. Para combater a desindustrialização em sectores críticos e garantir uma prosperidade duradoura e a resiliência económica, os líderes da UE devem concentrar-se numa política industrial coordenada que dê prioridade a parcerias justas, empregos verdes de qualidade e os mais elevados padrões ambientais e sociais. Não se trata apenas de facilitar a transição ecológica para as indústrias; trata-se de a fazer corretamente. A competitividade não é o objetivo final, mas sim a proteção do planeta e dos seus habitantes”. Daí que a federação de ONGA advogue a criação de um instrumento de investimento público permanente de, pelo menos, 1,6% do PIB da UE por ano que assegure a transição para uma economia do bem-estar.

Por ora, continuamos a viver num mundo económico desligado da realidade do mundo natural. É um mundo cego, surdo e mudo em que poluir é sinónimo de criação de riqueza e despoluir é tanta vezes visto como uma atividade ociosa – que o digam designadamente os povos indígenas, os maiores protetores dos serviços dos ecossistemas, cujo saber e praxis foram tardiamente reconhecidos na COP16 com a criação de um órgão permanente de consulta da ONU em que passam a estar representados na tomada de decisões sobre a biodiversidade.

Como disse David Suzuki, biólogo e divulgador da ciência, na sua famosa preleção “a economia não é uma ciência”, a economia está tão distante do mundo real que se tornou destrutiva: “mas se perguntarmos ao economista onde é que colocamos (na sua equação) a camada de ozono, onde é que colocamos os aquíferos de água subterrânea, onde é que colocamos o solo ou a biodiversidade, a resposta será: ‘oh, isso são externalidades’. Bom, então é como vivermos em Marte!” Ou dito por outras palavras, a biodiversidade, o outro lado da moeda das alterações climáticas, continua invisível aos olhos dos decisores e da opinião pública. Talvez apenas porque… é a natureza, estúpido!

Marta Leandro é membro do Conselho do Gabinete Europeu de Ambiente (EEB)

Artigo publicado no caderno online de Economia do Expresso

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