Nunca confronte um socialista com a sua história e nunca dê banho a um gato. Ambos ficam assanhados.

A difícil relação do PS com a sua memória coletiva

por Diogo Martins

Introdução

As redes sociais são, em grande medida, espaços politicamente espúrios, cuja utilidade vai pouco além do registo panfletário e da pequena provocação. No entanto, é possível nelas debater de forma elevada, assim queiram os intervenientes e o meio o permita. O Facebook, rede social em desuso pelas novas gerações, tem ainda a virtude de não impor limites de caracteres, como o Twitter, ou uma ditadura da imagem, como o Instagram. Essa característica permite mimetizar formas de debate mais sustentado, capazes de replicar os termos de argumentação que existiam nos blogues no início deste século XXI.

Reproduzo abaixo, ipsis verbis, o diálogo que mantive nessa rede social com Porfírio Silva, Diretor do Ação Socialista e representante daquilo que alguns insistem em designar por “ala esquerda” do PS, embora eu tenha dificuldade em definir exatamente do que se trata. A opção de reproduzir o debate como foi tido resulta de pragmatismo por parte do autor deste texto (o tempo escasseia) e respeito pelo meu interlocutor, dando-lhe a possibilidade de ser retratado nos seus exatos termos.

Considero este diálogo muito útil, porque revela vícios lógicos muito comuns, na experiência que tenho de discutir políticas de memória com quadros do Partido Socialista. Sendo uma discussão tida numa caixa de comentários, não tem, naturalmente, o nível de cuidado na escrita que procuro cultivar neste espaço. No entanto, considero ter qualidade suficiente para transmitir os problemas de uma certa forma de debater dos militantes do centro-esquerda português.

O debate

O debate começou a partir de uma publicação de Porfírio Silva, onde evocava o primeiro congresso do Partido Socialista. Uma das palavras que o cartaz ostentava era “socializar”, elemento que me levou a fazer um comentário irónico na publicação. A resposta de Porfírio Silva levou-me a tomar o debate mais a sério e a responder de forma mais sustentada. As respostas de Porfírio Silva foram, a meu ver, um festival de vícios lógicos e tom paternalista, aspetos que tendo a dispensar no debate. Mas poderão fazer o vosso juízo a partir da reprodução da discussão abaixo.

Porfírio Silva (1):

Faz amanhã 50 anos que começou o I Congresso do PS, onde se deu um passo fundamental para afirmar a autonomia estratégica do PS (onde ficou claro que não íamos ser um partido satélite de ninguém e que não íamos prescindir de uma democracia pluralista) e onde o PS se posicionou para ser o maior partido da esquerda portuguesa e o maior partido português.

Diogo Martins (1)

Foi um tal de socializar desde esse congresso. Socializaram a contra gosto no 11 de Março e depois foi um festival de dessocializar. Mas sabemos que as palavras não querem dizer nada. Os conceitos são borboletas. E qualquer incoerência demonstra pragmatismo e génio político. Nós é que não estamos a ver bem, toldados que somos pelo nosso sectarismo.

Porfírio Silva (2)

As palavras só não querem dizer nada quando são ditas (ou escritas, no seu caso) por pura provocação e falta de sentido da história. A quem se deve, em Portugal, o SNS? E a escola pública? E a segurança social pública? Já para não falar da democracia, esse facto que alguns tão “revolucionários” desprezam como se não fizesse diferença. Se há por aí alguém com melhor currículo de socializar, mostre-se.

Diogo Martins (2)

Não se trata de provocar. Trata-se mesmo de não tentar tomar os outros por tontos. Ainda comecei a ir à procura de documentos no arquivo online da ephemera, mas não me parece que tenha aqui de perder tempo a demonstrar uma coisa que o meu interlocutor sabe. Que a palavra “socializar” tinha uma aceção para as teses do PS em 74/75 que esteve em agudo contraste com a sua prática política. Eram eixos desse discurso de socialização, por exemplo, o desmantelamento dos monopólios, uma reforma agrária com preferência pelas cooperativas de pequenos produtores e a autogestão. As duas últimas, refira-se, numa tentativa de apresentar uma “socialização” diferente da apresentada pelo PCP, de inspiração mais estatizante. No caso da reforma agrária, mobilizando as teses de Lopes Cardoso. No caso mais amplo da autogestão, numa convergência de influências interessantes, que se balizavam desde uma linhagem republicana não marxista, onde se inseria o pensamento de António Sérgio, até às experiências mais híbridas de mercado e planeamento, como no caso jugoslavo. Portanto, repare que o meu problema não é a socialização a que o PS se referia não ser a socialização preconizada pelo PCP ou pela extrema-esquerda, ao contrário do que está a sugerir com a piadinha do “revolucionário”.

O problema é que a expressão “socializar” como colocada nesta época pelo Partido Socialista sugeria uma visão de socialismo de clara subordinação do poder económico ao poder político (de resto, esta era, ipsis verbis, a fórmula utilizada à época). Essa visão sugeria pretender ir muito, muito além de uma ideia de desmercadorização da vida económica circunscrita às áreas da saúde e da educação. Não se trata de desvalorizar estas últimas. Trata-se de não fingir que o termo “socializar” nesse cartaz não ia bem além dessa dimensão.

E pensemos o que no que fez o PS quanto à sua visão de socialização. Bom, quanto à política anti-monopolista, ela foi imposta pela crescente força socializadora da revolução depois do 11 de Março. Não foi obra do PS e, embora tenha apoiado publicamente a nacionalização da banca e dos seguros, sabe-se hoje que Mário Soares manifestou o seu desagrado em privado. E o que fez Soares no final da década de 80? Como o próprio não se coibia de dizer, foi um facilitador do regresso das famílias Espírito Santo e Champallimaud a Portugal, manifestando orgulho nisso. De resto, no espírito das privatizações que se seguiram à revisão de constitucional de 89, negociada pelo PS com o PSD de Cavaco Silva.

O que fez o Partido Socialista quanto à autogestão, esse fator de distinção que tanta vez usou como forma de captar o imaginário dos trabalhadores durante o PREC? Bom, eu não conheço nenhuma iniciativa legislativa de monta do PS em favor de modelos autogestionários ou de base cooperativa. Não existe pensamento acumulado sobre o tema. Foi verbo de encher político.

E a reforma agrária de base cooperativa? Bom, Lopes Cardoso levou um chuto dos seus camaradas e o PS pôs António Barreto, esse grande homem da esquerda, a desfazer a reforma agrária, sob o pretexto de “a corrigir”.

Eu não ignoro que os partidos social-democratas têm um problema no cultivo da sua memória coletiva. É que, enquanto a noção de coletivo partidário apela a uma ideia de pertença que requer um elevado grau de homogeneidade, os elementos que balizam essa pertença mudaram muito ao longo do tempo. Particularmente, no caso do Partido Socialista em Portugal. Estou a ler um livro bastante interessante sobre como os partidos social-democratas tradicionais, como SPD, passaram por três fases: uma fase em que a revolução era objetivo último, mesmo que reconhecendo a importância da dimensão incremental dentro de um contexto capitalista, um segundo contexto de tecnocracia de inspiração keynesiana e uma última fase de tecnocracia de inspiração neoliberal. Se pensarmos no caso português (não abordado no livro em detalhe), a sua singularidade o é que o PS fez a transição do momento 1 para o momento 3 em pouco mais de uma década, enquanto a evolução noutros partidos europeus foi muito, muito mais lenta e, por conseguinte, menos dada a contradições evidentes, dificilmente enquadráveis.

É inegável que todos os partidos aplicam o seu programa em condições que não são ideais-tipo. Há sempre concessões, há sempre impurezas que resultam do contraste com a realidade. Isso é normal. É normalíssimo. O problema é que o contraste da dimensão programático do PS em 74/75 com a sua prática política (e mesmo com o que se conhece do pensamento dos seus principais quadros de então) deixa claro que nunca houve sequer uma tentativa séria de aplicar esses princípios. O “Socializar” na aceção desse cartaz foi uma necessidade do ar dos tempos. Nada mais. E isso não é arte política. É fraude, é engano. E com franqueza não vejo outra forma de o interpretar. Qualquer tentativa de federar uma coerência política discursiva no PS, que vá do congresso de 74, aqui evocado, até aos dias de hoje, tem de recorrer a mistificações e recomposição de conceitos, como, de resto, acabou de fazer na sua resposta.

Vai perdoar-me a resposta longa. Mas é que eu, embora tenha nascido em Vila Franca, aprecio pouco ser toureado.

Porfírio Silva (3)

Há um problema com a sua teoria: é que passa completamente ao lado da história real da democracia portuguesa. A realidade, para si, fica para trás do discurso. Por essa razão, não aprendeu nada com a realidade e continua a discutir nos termos de há 50 anos. Um partido que tem de lidar com a realidade e com as pessoas concretas, no mundo concreto, não pode ter essa visão do mundo. É por isso que as suas palavras são irrelevantes para apreciar o percurso do PS e o socialismo do PS. Já foram enterrados (pela história) muitos que queriam ensinar ao PS o que era ser “verdadeiro socialista”, os quais, regra geral, nunca concretizaram coisa nenhuma a favor do povo deste país.

Diogo Martins (3)

Obrigado pela resposta, mas, se me permite a ousadia, também há vários problemas com a sua réplica. 1. Precisamente por não querer ser acusado de”ensinar ao PS o que é o verdadeiro socialismo”, a minha resposta procurou analisar o socialismo como definido pelo próprio PS por altura do Congresso que entendeu por bem evocar. Não se trata aqui do “meu” socialismo, mas daquele que o PS entendia desejável; 2. Repare que o quadro temporal é bem mais modesto do que o que sugere. Claro que muito pode mudar em 50 anos, mas eu contrastei o programa de 74/75 com a sua aplicação escasso anos depois, não 50 anos. O abastardar dessas propostas aconteceu quase no imediato. 3. Tenho muita dificuldade em discutir a partir de vícios lógicos. Ns discussão sobre a história do PS, gostam sempre de usar uma bala de prata, uma rifa “sai sempre”, que é a de dizer que fizeram o melhor face às circunstâncias concretas. Ora, este é um argumento impossível de rebater se levado à exaustão. Para ser válido, tem de ter restrições. Essas restrições são sempre negadas nesta discussão. Eu tentei convocar restrições que me parecem razoáveis: contrastar o programa do Congresso com as ações que se lhe seguiram, a curto médio-prazo, tentanto sublinhar que, para lá de condições, não creio mesmo que os principais quadros que saíram vencedores deste Congresso alguma vez tenham tido intenção de aplicar esse programa. 4. Trazer a dicotomia “velho vs novo” para mascarar de antiquado ou ultrapassado pela história aquilo que são verdadeiras opções políticas contemporâneas é uma falácia argumentativa. É a mesma que a IL usa para explicar que é um partido “moderno”. Não me verá a aceitar argumentar nesses termos.

Porfírio Silva (4)

O seu problema continua a ser o mesmo: completamente ao lado do processo histórico real. Essa conversa tem, pois, interesse nulo. Já a tentativa de querer ser provocatório: risível. Enfim: cuide-se e não gaste o meu tempo.

Notas finais

  1. Não me parece que tenha sido deselegante na minha forma de discutir e, por isso, foi com surpresa que vi o tom do comentário de Porfírio Silva a terminar esta discussão. Poderia ter dito simplesmente que não tinha tempo ou que preferia reservar este tipo de discussões para um outro momento. Insinuar que lhe faço perder tempo apenas porque interagi criticamente com uma publicação que o mesmo Porfírio colocou no espaço público parece-me uma forma pouco construtiva de habitar esse mesmo espaço público. No entanto, serei o último a fazer de virgem ofendida. Como pessoa vezeira em perder a calma em discussões digitais, não levo nada disto demasiado a sério. Por mim, no hard feelings.
  2. O livro que menciono num dos comentários, mas cujo título não cito, chama-se Leftism Reinvented: Western Parties from Socialism to Neoliberalism, de Stephanie L. Mudge. Não creio que exista uma tradução para português. No entanto, caso ler em inglês seja uma opção, deve ser fácil encontrar uma cópia digital gratuita em alguns dos campos obscuros, mas muito democráticos, da internet. Da minha experiência, os autores académicos gostam sobretudo ser lidos e o que recebem das editoras é insignificante. Por isso, não se façam rogados.
  3. O link para a discussão original fica aqui.
Diogo Martins

[Publicado na plataforma Substack.com em Fratura Exposta]

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