Algo vai mal…

por Fernando Matos Rodrigues

A crise no atual governo da direita (PSD/CDS) provocada pela situação que envolve o atual primeiro-ministro e uma empresa da qual é um dos principais titulares é demonstrativa da forma irresponsável e ingénua como entendemos o serviço à República. A situação não sendo nova, pensávamos que não se repetiria, que os representantes políticos já tinham aprendido a lição, de que não podemos continuar a fazer política sem sentido ético e sem responsabilidade cívica. O mandato político requer sentido ético e capacidade de cumprir com as mais elementares regras do jogo democrático definidas na Lei da República.

O descrédito da vida política é acima de tudo o descrédito dos políticos e dos partidos. O cidadão, o homem da rua, tem a percepção de que os políticos e os partidos são instituições mafiosas, malandras, que servem outros interesses que não os do Estado e do Bem Comum. As televisões, os jornais e as redes sociais amplificam esta fatualidade de que na política não existe gente digna nem honrada. A ideia de que são todos iguais, uma “canalha que usa o Estado para se governar”. Perante esta percepção e esta ilusão, os partidos da extrema-direita populistas ganham terreno eleitoral, ocupam cada vez mais cadeiras na Assembleia da República e preparam-se para atacar a essência do regime democrático. Esta generalização para além de ser falsa e matematicamente injusta, serve como luva os interesses oportunistas dos partidos antidemocráticos.

Há muitas formas de compreensão e de análise deste problema, uma das evidências, é que são os partidos democráticos com as suas incongruências, com as suas tibiezas, com as suas fragilidades que promovem estes partidos da extrema-direita em S. Bento. Perante a dúvida, a incerteza, a sombra e a vulnerabilidade só existe uma resposta -, a afirmação da verdade, da dignidade e da justiça na praxis política. Nenhum governante o pode ser, na sombra e na dúvida, na incerteza e na vulnerabilidade da sua pessoa. A política é feita de gestos e de símbolos. O actual primeiro-ministro devia ter tido a dignidade de abandonar o lugar pela sua própria mão. Faltou-lhe a sabedoria e a dignidade do gesto.

Claro que seria possível e necessário evitar mais uma crise governativa, que tendo como foco a polémica em torno da falta de transparência da vida profissional do actual primeiro-ministro de Portugal, só vem lançar a ideia que estamos perante uma crise sistémica da vida democrática. O que não é verdade. Pelo simples facto que não é a democracia que está em crise, mas os partidos que não se integram normalmente nas regras da vida democrática e preferem habitar terrenos pantanosos que recusam cumprir com as regras estipuladas no texto constitucional (cf.CRP76).

 Algo vai mal nas nossas democracias. Um primeiro-ministro que se demite por causa de dúvidas em relação ao dinheiro que apareceu no gabinete do seu governo, entre folhas de livros. A situação é insustentável e leva à demissão do primeiro-ministro socialista António Costa. Um governo com maioria parlamentar o que traduz mais gravidade à situação de ingovernabilidade e à ligeireza como se lida com os assuntos do Estado.

Afinal, o problema não está num só partido, numa só ideologia, mas é transversal à vida e prática política nacional. As situações que envolveram políticos nestes últimos governos leva-nos a concluir que o problema é estrutural e orgânico, atravessa transversalmente todos os partidos, não se resume a uma simples derrota de um partido ou ideologia, mas tem a sua genealogia na forma como os partidos recrutam e promovem os seus militantes a cargos de responsabilidade governativa.

A queda mais profunda da vida democrática tem como origem a postura arrogante e a forma irresponsável de governar dos ministros e secretários de Estado dos últimos governos com o inevitável desmoronamento da credibilidade política dos representantes do povo português e, consequentemente conduzem ao aparecimento das distopias políticas próprias dos partidos populistas e demagógicos como o “Chega”.

As democracias atuais vivem uma assustadora travessia no deserto, que nos leva para uma crise profunda dos partidos democráticos, com consequências incalculáveis na normalidade da vida democrática nacional e europeia, aumentando o fosso entre representados e representantes, entre cidadãos e governantes, entre compromisso e mandato.

A transparência política leva-nos para a separação dos fins e dos meios na política, obriga-nos a ter uma postura de claridade e de leveza, de honestidade e de serviço, capazes de evitarem as sombras, as duplicidades, as dúvidas e as fragilidades da vida humana. Não podemos cair na tentação de Hobbes ao considerar toda a natureza humana como naturalmente “má”, “corrupta” ou “mafiosa”.

Torna-se urgente fomentar o princípio da esperança na construção de uma sociedade justa e livre, cujo principal propósito é a construção de uma sociedade onde a dignidade da pessoa humana seja a sua principal razão de ser.

Imagem topo: Escultura de Mónica Oliveira

Fernando Matos Rodrigues – Antropólogo, Investigador CICS.Nova UM/LAHB

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