O Barraco é a Arquitetura dos Pobres

A destruição das casas-barraco, num amontoado de memórias, de objectos das famílias, de bens privados coloca esta comunidade num lugar de “nada”, de não pertencer a nada, remete para um sentimento de perda de habitar.

por Fernando Matos Rodrigues

“O princípio da subordinação da propriedade privada ao destino universal dos bens e, consequentemente, o direito universal ao seu uso é uma regra de ouro do comportamento social e o primeiro princípio de toda a ordem ético-social. A tradição cristã nunca reconheceu como absoluto ou intocável o direito à propriedade privada, e salientou a função social de qualquer forma de propriedade privada”.

(in Carta Encíclica Laudato Si, Papa Francisco, 2015)

I.

A demolição dos barracos nas cidades de Loures e da Amadora remete para o problema grave de habitação que se vive novamente em Portugal, com especial destaque para as cidades que integram a AML (Área Metropolitana de Lisboa). Esta situação de grave carência habitacional afecta todas as categorias sociais que vivem do seu trabalho, mas é essencialmente grave nas classes migrantes desfavorecidas, étnicas e racializadas que vivem exclusivamente de um salário que ronda os oitocentos e os mil e duzentos euros mês.

Os moradores destes barracos são uma espécie de construtores e de arquitetos geniais, foram eles que construíram as suas casas em processo colaborativo-participante em autoconstrução, escolheram o sítio, desenharam as suas casas de acordo com o agregado familiar, resolveram o problema da água e da luz, das acessibilidades, convocaram familiares, amigos e deram início a uma obra aberta e total. A pobreza financeira levou-os para a reciclagem de materiais, para o aproveitamento de outros que foram abandonados ali ou acolá. Estamos perante uma arquitetura verdadeira, básica e pobre de materiais que tenta fazer face aos rigores do clima e aos desafios da construção.

Perante um Estado que lhes nega o acesso a uma habitação digna, acessível e integrada na rede urbana e social, só lhes restou caminhar para a autoconstrução em terrenos sem função urbana e social, muitos deles propriedade municipal.  Terrenos que se encontram próximos de vias de transporte, com facilidade de buscar água e luz de forma artesanal e ilegal. Os bairros de autoconstrução fazem lembrar aquela velha imagem do sujeito que morre de fome no meio da abundância. Ficar sem casa no meio de tanta casa parece-nos contraditório e antinatural, mas destruir os barracos-casas que foram produto de uma acção de autoconstrução sem garantir uma alternativa de abrigo durável para estas famílias, para estas mulheres, para estas crianças não é grave, é maldade e falta de humanidade. Todo este processo de destruição das casas dos moradores no Bairro do Talude Militar no concelho de Loures remete-nos para uma transformação do Estado Social em Estado Policial e Penal, com a gradual criminalização das ocupações e autoconstruções.

Será legitimo criminalizar, higienizar e penalizar todo aquele que não tendo resposta do Estado, coloca mãos à obra e constrói a sua casa-barraco? Dá abrigo e segurança aos seus filhos? Permite-lhes ter um teto e umas paredes que os abrigam da chuva e do frio? Construída sem custos para o Estado e para os municípios estas casas-barraco não serão um modelo a implementar com outras soluções arquitetónicas e construtivas?

A destruição deste Bairro de casas em autoconstrução remete também para a destruição dos vínculos sociais e afectivos da comunidade; coloca em causa a estrutura económica das famílias e seus membros dependentes, remete para a destruição da ligação ao sítio e suas referências topológicas estruturantes da identidade de pertença a um lugar. Crianças que perdem as suas referências topológicas e mapas mentais de interação social. Crianças que perdem os amigos e a vizinhança que lhes dá segurança e interação.

 A destruição do Bairro do Talude Militar implicará fragilidade afectivas e desequilíbrios mentais para a comunidade deslocada e sem realojamento seguro. A destruição das casas-barraco, num amontoado de memórias, de objectos das famílias, de bens privados coloca esta comunidade num lugar de “nada”, de não pertencer a nada, remete para um sentimento de perda de habitar. A fragilidade é total e assustadoramente vazia entre os destroços de uma vida em comunidade que se resume com esta operação municipal à violência, criminalização, penalização e abandono pelo Estado enquanto pessoa de bem.

A operação de arrasar com as casas-barracos no Bairro do Talude da Marinha levada a efeito pela Câmara Municipal de Loures viola vários princípios do direito à habitação, consagrados em cartas internacionais e nacionais, com destaque para o Artigo 65.º da Carta Constitucional (CRP76), da Lei de Bases da Habitação (Lei n.º 83/2019, de 3 de setembro), especialmente o Artigo 11.º – sobre Direito à escolha do lugar de residência, e o Artigo 13.º – Protecção e acompanhamento no despejo. O articulado legal impõe às autoridades competentes um conjunto de procedimentos que garantam que o despejo administrativo só possa ser concretizado quando estão esgotadas todas as possibilidades de alternativa e encontrada uma solução que garanta uma habitação digna e durável para as famílias em causa.

II.

A questão da habitação tem sido alvo de estudos por muitos teóricos da economia e cientistas sociais ao longos destes últimos dois séculos, com destaque para o pioneirismo de Friedrich Engels (1820-1895) e de Karl Marx (1818-1883), ainda hoje pode dar explicações para o que está a acontecer no sector da habitação e do direito à cidade. Estes autores focaram a sua teoria explicativa nas relações sociais, onde cada um dos actores participa e estão integrados numa complexa estrutura “determinante” para a construção do todo social. A sua ligação com a terra, com o trabalho e com a vida social apresentam-se como fundamentais para as relações de produção que continuam a ser fundamentais na estruturação de qualquer sociedade humana.

Aliás, sobre esta problemática Lefebvre (1975), considera que só é possível atingir a estrutura essencial de uma sociedade, quando a análise recusa as aparências ideológicas e as fórmulas oficiais; tudo aquilo que se agita à superfície de uma determinada sociedade e defende como necessário mergulhar nas águas profundas e complexas da infraestrutura para compreender a natureza da vida económica e as leis do sistema capitalista e suas equivalências, como a circulação de “coisas” e bens, que vão desde os serviços ao trabalho, das mercadorias ao dinheiro e à habitação.

Por outro lado, a economia clássica, filha da ilustração, já procurava na liberdade do mercado, bem como na sua mão-oculta, essa mão-oculta que forjava a mudança tecnológica e a mobilização da ciência em actividade de produção e que libertaria a sociedade da escassez e da necessidade, promovendo a capacidade para a autorrealização e autoemancipação através da eleição do mercado. Promessas que se tornaram distópicas e/ou retopicas Não podemos ignorar que a crença na liberdade de mercado e do consumo veio até Keynes. Esta tendência liberal de pensamento económico e político acompanha-nos em forma de lei e em forma de planos de privatização, onde a retórica do livre mercado domina os programas de reforma económica promovidos pela União Europeia (EU), Banco Mundial (BM), Fundo Monetário Internacional (FMI) e finalmente pelo Banco Central Europeu (BCE). Estas instituições defendem que se deixe o mercado seguir o seu curso, porque a emancipação e a autorrealização vêm na sua continuação e glorificação (Silva, 2023; Ribeiro, 2017; Piketty, 2014; Canclini, 2019).

O conto liberal de que o mercado per si resolveria todas as contradições internas de um capitalismo injusto e assimétrico na sua matriz e inscrito nas suas crises cíclicas, viria a ressurgir na nova retórica neoliberal que faz o seu reaparecimento nos anos 70 com Friedman e demais Boys de Chicago. Inspiradores das agressivas contrarreformas de Margaret Thatcher e de Ronald Reagan e que tiveram eco em Portugal pela mão do primeiro ministro Cavaco Silva. Segundo Brown (2016) o neoliberalismo também se desenvolveu nas nações euro-atlânticas através de técnicas de governança da democracia por termos essencialmente económicos e financeiros.

Se de início, a racionalidade neoliberal tinha como suporte uma economia de produção, rapidamente se transformou numa economia da financeirização e da especulação imobiliária a nível global com o cerco às cidades europeias. O neoliberalismo desde cedo que se mostrou como uma reação económica e política contra o Keynesianismo e o socialismo democrático. São vários os cientistas sociais e teóricos da economia que alertaram e denunciaram os malefícios do neoliberalismo, com destaque para o aumento das injustiças sociais e económicas, o emagrecimento dos serviços públicos (Saúde, Educação), e na transformação do Estado do Bem-Estar Social num Estado assistencialista /caritativo, determinado por uma concepção moralista e moralizante da pobreza e dos pobres (Rodrigues & Silva, 2023; Wacquant,2012). Com alguns destes cientistas a reconhecerem que estamos perante um retrocesso civilizacional que nos coloca novamente num mundo de guerra, de injustiça social, de fome, de grande instabilidade migratória (Graeber,2022; Hichel, 2018; Jappe, 2017).

III.

Perante o aumento das desigualdades económicas e das injustiças sociais no mundo é cada vez mais compreensível o compromisso político de Marx em defesa das classes desprotegidas e exploradas pelo Capital. Marx apela para o compromisso social e político, defende inclusive que a «nossa tarefa não é somente entender o mundo, mas também de transformá-lo», em benefício de todos, sem exclusões de raça, de credo, de género ou de classe. Na sua critica radical do valor, do trabalho abstrato e do dinheiro Marx denuncia como a reprodução da sociedade e a vida social estão associadas aos modos de produção e à repartição da mais valia e das contradições entre valor de uso e o dinheiro como mercadoria real. Remete para a luta de classes, que hoje, também é uma luta de raças, de géneros e de ambiente.

O mercado imobiliário encaixa como uma luva neste mecanismo. O que faz deste sector económico um bloco financeiramente apetecível. A carência habitacional é um problema que se alimenta da sua solução, isto é, quanto mais casas se construírem, mais se agrava a situação. Porquê? Este capitalismo financeiro que alguns teóricos identificam de neoliberal, tem a particularidade histórica de fazer do dinheiro a sua própria mercadoria. O dinheiro já não é um auxiliar da produção de mercadorias, transformou-se ele próprio num instrumento auxiliar para produzir mais dinheiro. Em suma, o dinheiro transformou-se numa mercadoria real. Estamos perante uma fome abstrata de casas pelo mercado imobiliário que jamais será saciada, cuja função principal não é satisfazer as necessidades reais das pessoas numa determinada cidade, mas aumentar a lógica do valor da mercadoria e do dinheiro. Estamos perante uma situação que nos levará inevitavelmente para uma grave e profunda crise económica e política em torno da habitação e da construção.

Por último, a natureza deste capitalismo financeiro traduz-se na avidez, na injustiça social, na exploração e na dominação que irá conduzir inevitavelmente à sua autodestruição (Japp, 2017).

Antropólogo e Investigador CICS.NOVA_UM/LAHB

[artigo publicado originalmente no jornal “Sol”]

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